27.3.08

Breve História da Morte de Narciso

Tantos Homens que buscam o rosto de Deus! Mas será que existe esse ideal de bruma? Onde está ele? Onde está ele? Onde está ele?! Porque não nos defende dos horrores do Mundo, dos horrores dos outros, dos horrores de nós próprios? «É o Demo!, é o Demo!» gritam umas almas mais espantadas… É então o Demo o Senhor dos Vivos… Belo Deus Supremo que só consola os mortos! Convenhamos que é um Deus inteligente: é mais fácil consolar um cadáver… Sim… Os Homens buscam o rosto de Deus… e eu que finalmente o achei! Ainda lembro exactamente como foi… certa manhã de sol fogoso, em frente ao espelho… Foi o meu maior pesadelo… Era tão feio! Tão real! Tão acessível! Estava tão perto… Conheci então o horror da responsabilidade… Porque é tanto o esforço de albergar a divindade em nós! Foi por isso que Narciso se afundou nas águas: ele não se apaixonou por si mesmo como dizem. Narciso nem era muito belo… Mas certo dia foi ao lago matar a sua sede, pesando no seu coração a dúvida de todos os Homens, e viu o que buscava no lago em que bebia. Pareceu-lhe primeiro um outro, mas percebeu, porfim, que o rosto que contemplava era o seu. Como podia, ò perfídia!, ser possível ser ele mesmo toda a divindade? Como suportar agora a obrigação sublime de sempre agir bem, de ser Perfeito, de ser Justo, de ser Bom? Onde cabia nesta descoberta a segurança, o alívio, o repouso do erro?
E foi então que, embrenhado no desespero desta verdade inflexível, e incapaz de se submeter à alienação das crenças, Narciso contemplou uma vez mais o seu rosto, e, com uma expressão de assombro e ódio inconsumível, mergulhou furioso no cemitério das águas…

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