«Hoje - explicou-me o meu amigo quando veio a minha casa - estou de mudanças: Ando a mudar-me da direita para a esquerda do Pai por mera conveniência política. Noutros tempos era no próprio colo do Senhor que eu me sentava (um pouco ao jeito do que o Márinho fez com aquela tartaruga!) , mas o velho já não está para cantigas. O que comprovo destas mudanças de lado, é que, quer na núvem da direita quer na outra da esquerda, me vejo mal instalado. E isto de mudar a tralha e a camisa com o mudar constante de uma e outra ideologia, é uma estafa! Não tivesse eu um importante papel a cumprir, e descia lá do alto onde estou, para viver calmamente entre o comum dos mortais... E, no entanto, vendo bem, isto por aqui anda tão miserável! Aliás, essa miséria vê-se bem no que comemos! - eu protestei, mas Tomé logo me fez ver a razão - Como podes tu contrariar-me quando este chá é quase um copo de água? E que dizer dessas bolachas, de há uma semana, sem açucar nem sal? E desse pão ressequido? E dessa manteiga com sabor a ranço? É isto que se oferece a um santo?! Pouca vergonha!» Tentei explicar ao meu amigo que era difícil ter boas coisas em casa quando se tenta viver apenas do seu trabalho honesto. Desta vez o meu Tomé zangou-se a sério: «E julgas tu que eu não sei? Eu tenho dois mil anos! Quem pensas tu que ensinas?! Porque achas tu que há mais de dois milénios eu ando de núvem em núvem, sempre a trocar de camisa, com a tralha toda atrás das costas e a decorar novas frases de ordem, novas ideologias? Para aconchegar a asa ao Criador? Para lhe ver as vestes remendadas? Para apreciar a paisagem de um e de outro lado do Céu? Não! Eu sigo o curso das estrelas, vejo os sinais dos tempos, adequo o meu ânimo descrente à crença de cada tempestade! É por isso que a minha vida é um conforto! Francamente! Um calmeirão desse tamanho e ainda não aprendeste! Ora deixa lá que tu assim vais longe! Vê mas é se tens juízo, em vez de andares com ideias, e se começas a transmitir às gentes deste mundo que o sensato na vida é mandriar e estar apenas atento a quem se vai sentando n'A Cadeira para lhe engraxar as botinhas, lhe ajeitar o colarinho, lhe pentear o cabelo, mudar a côr da camisa para aquela côr que ele veste, e estar na direita ou na esquerda ao sabor das correntes! Entendeste?! Olha o paspalho! Eu venho aqui comer para o educar, e o inútil a largar postas de pescada! Quem lhe desse com o peixe nas ventas!». E assim foi: do assombro do nada surgiu uma pescada e, num golpe digno de um lutador de sumo, o sacana do santo vai de me dar com a maldita pescada na vista, e de tal modo, que ainda conservo um olho negro! Confesso, irmãos, que me doeu mais o coração do golpe do que o olho inflamado que ainda me assusta no espelho. Quase chorei, emudeci arrasado. O meu amigo, pensei, o meu próprio amigo, a atentar-me deste modo ao olho?! É pungente... Mas com Tomé é comum: o seu método de ensino reside no choque. Se por choque se entender adequado eu ser espancado até à exaustão, será então essa a medida a tomar. Para o meu santo é importante a disciplina e é evidente que qualquer disciplina exige sacrifício. De facto, agora, ao longe, reparo que um ou outro espancamento ocasional nos dá certa clarividência. É espantoso! Senão, veja-se o exemplo: Estou em casa, sozinho, depois de ele ter já ido embora, amuado e bruto, e acendo a televisão para espairecer. Como um poltergeist enclausurado, surgem-me de lá, horrorosas, a voz e a figura do Sócrates, esse ministro que temos por estranho hábito designar por primeiro. Ele fala. Ele explica. Ele desenvolve. E eu reconheço nele, por força da lição do meu santo, um colossal ascetismo: tantas vezes vimos este herói da boa vontade e da perseverança mudar de camisa! Tantas vezes o vimos a resgatar da poeira antiga (ou da Futura!, anacronismo excelente!) novas, remendadas, reachadas ideologias! Tantas vezes se desdisse desdizendo que dissera o que o ouvimos dizer dizendo que não diria o que disse! Tantas vezes nos falou em levantar Portugal! E de todas essas vezes o que ele afinal fazia era caminhar da direita para a esquerda do Pai (cujo nome real é Despotismo), passear de núvem em núvem, de mentira em mentira, para nos dar a entender (oh!, Sublime!, também tu és santo!) um novo ideal de Homem... Agora pergunto: Teria eu entendido este ascetismo se não tivesse Tomé tido a bondade de me aplicar aquele bofetão? Esta é, irmão, portanto, a lição de hoje: A disciplina é tudo. A gentileza é uma coisa bonita, mas, de quando em quando, todo o Homem precisa de um golpe. A Humanidade dorme e tu, mais iluminado, tens de fazer por acordá-la. Não te restrinjas, não te coíbas: Vai pelo Mundo e Age. Sê verdadeiramente Cristão: Espanca e Educa. Amen.
21.4.08
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