O genial e poético clássico de ficção científica, Blade Runner, (a obra-prima por excelência do inconstante Ridley Scott, com banda sonora de luxo de Vangelis - o seu melhor trabalho), volta às salas de cinema, 25 anos depois da estreia, numa versão comemorativa. Visto pela primeira vez em Portugal em 1983, no Fantasporto (estreado nos Estados Unidos em 82) , o filme tem re-estreia marcada para quinta-feira, 24 de Abril, numa nova versão, para além das 5 já existentes - The Director's Cut e outras 4 de arquivo. O Gume, fanático por obras-primas, cometeu a loucura de adquirir a edição especial em dvd e tem andado a regalar-se com as várias facetas deste filme que é, ao jeito de Nietzsche, demasiado humano. Tão humano, aliás, que nos faz questionar a nossa própria noção de "ser natural". O que é a Humanidade enquanto qualdiade de uma espécie, característica distintiva de outras ditas selvagens ou elementarmente animais (ou mecânicas)? Até que ponto não nos confundimos com os circuitos das máquinas, e até que ponto uma criação artificial, quanto mais completa, não se aproxima de nós, não reflecte as nossas ansiedades, os nossos dramas, o nosso problema da existência? A questão de Philip K. Dick (enunciada como título da obra escrita em 1966 que depois deu origem ao filme de Scott) é por demais pertinente (e cada vez mais pertinente): "Do Androids Dream of Electric Sheep?". E com que sonhamos nós? Os autores do argumento (Hampton e Peoples) alteraram-no substancialmente em relação à obra de Dick (de que sobreviveu o sentido, o fio condutor), e os próprios actores, como o fantástico Rutger Hauer (o lider andróide Roy Batty) contribuiram de forma indelével para a criação de momentos de verdadeira elegância no argumento, caso do seu belíssimo discurso final, na já icónica batalha à chuva com Deckard (Harrison Ford). Mas livro e filme (e mais reinvenções e interpretações que deles façam) mantêm a questão central sobre a natureza do Homem e a sua febre inata de conhecimento. Um e outro levam-nos a reflectir sobre o sentimento de revolta existencialista intrínseco a todo aquele que questiona, que põe em causa a visão "oficial" ou comum sobre qualquer aspecto da realidade ou da vida. O encontro de Batty com o brilhante Dr. Eldon Tyrell (também ele um "replicant" de acordo com certas interpretações/versões do argumento/filme - dúvida igualmente imposta ao implacável Deckard) é facilmente equiparável ao confronto entre o Orestes de Sartre e Zeus, seu criador (Cf. Sartre, Les Mouches, 1943). E até mesmo as respostas de um e outro "deus", não diferirão muito no sentido. Tyrell é mais discreto, mais subtil do que Zeus na sua arrogância, mas em ambos os "omnipotentes" se acha a mesma frieza objectiva, o mesmo orgulho da criação, a mesma noção de superioridade numa desiquilibrada relação de Poder. E o fim irónico de Tyrell limita-se a ser mais ilustrativo e fisicamente violento do que o de Zeus sartriano, pois também o segundo perece (o símbolo é, creio, a mais poderosa e perigosa das armas) sob o peso da vontade/afirmação da liberdade individual de Orestes. No entanto, esta descoberta da individualidade/liberdade alimenta (como efeito secundário) o desejo de vida eterna; segue-se, pois (inevitável), a luta pela sobrevivência, pela utopia da perfeição. Blade Runner é um olhar sobre estas angústias típicas de cada consciência, uma análise do sentido de ser, um lamento sobre a efemeridade da vida num universo simbólico de eras futuristas que cada vez mais se firmam no tempo em que vivemos (como já então se firmavam).
De facto, a LA de 2019 de Blade Runner, pode ser já esta Lisboa de 2008 ("these are indeed dangerous days"). Os "replicants" em análise podem não ser os mesmos ou não ser bem andróides (ou ou seus mais avançados modelos Nexus6, ou 11 ou n), mas as lutas centrais do filme confundem-se facilmente com as nossas desilusões e frustrações, com as nossas dúvidas e esperanças diárias, acabando nós por mais depressa nos identificamos com esses andróides (que realmente somos) do que com o homem que os caça. Já se perguntaram porque os caça?
"Replicants are like any other machine. Either they are a benefit or a hazzard. If they are a benefit it is not my problem"
(Deckard, para Rachel, numa das cenas iniciais)
Será que não? É ou não é, caro leitor, também um seu problema?
1 comentário:
necessario verificar:)
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